O lendário guitarrista da banda tinha mais misticismo Kiss do que qualquer outra pessoa — neste ou em qualquer outro planeta
O post Adeus, Ace Frehley: o Spaceman do Kiss que nos conectou e nos manteve nas alturas apareceu primeiro em Rolling Stone Brasil.
O mundo está erguendo um copo de gin gelado em homenagem ao lendário Ace Frehley, o guitarrista espacial do Kiss. Frehley morreu na última quinta, 16, aos 74 anos, por complicações após uma queda. Se alguém representou o arquétipo do guitarrista dos anos 1970, foi ele — o cadete espacial do planeta Jendell. Ele personificava o lado “super-herói de quadrinhos” da banda, com sua maquiagem prateada, as botas espaciais de plataforma e o charme despretensioso de quem não ligava para nada. Mas o som dele era puro poder do rock — sua Les Paul explodindo por um amplificador Marshall nos solos insanos de “Shock Me”, “Strange Ways” e “She”. O mais amado filho nativo de Jendell está voltando para casa.
Kiss sempre foi sobre mistério — e ninguém tinha mais disso do que Ace. Em uma banda de empresários sensatos, ele era o verdadeiro selvagem, o cara que de fato vivia o lema “rock and roll a noite toda e festa todo dia”, espalhando caos por onde passava. Ace desafiou a morte várias vezes, fosse dirigindo seu DeLorean na contramão do Bronx River Parkway a 160 km/h ou encontrando o Fantasma do Parque. O Kiss era formado por personagens mitológicos: Paul Stanley como o Starchild, Gene Simmons como The Demon, Peter Criss como The Catman. Mas o Spaceman era só dele.
“Eu como, durmo e respiro o meu personagem”, disse Ace à Rolling Stone em 1977. “É a minha fantasia ir para outro planeta. Quando eu tiver 40 anos, as viagens interplanetárias serão comuns. Ninguém vai querer falar comigo nessa idade, de qualquer forma. O estrelato é uma fase temporária. Você se torna candidato a um hospício quando acredita que o que você é vai durar para sempre.”
Ele certamente não imaginava um futuro em que ainda seria famoso quase 50 anos depois: “Eu vou estar em Marte. Que se dane. Este planeta nem vai existir daqui a 50 anos.”
Paul Daniel Frehley cresceu no Bronx e teve a mente explodida aos 15 anos quando viu o primeiro show dos Who nos Estados Unidos. Ele se juntou aos outros três integrantes do Kiss após responder a um anúncio nos classificados do Village Voice. “Procura-se guitarrista solo com estilo e habilidade”, dizia o texto. “Sem perda de tempo, por favor.” Ace definitivamente não fez ninguém perder tempo. Tinha apenas 21 anos, ainda morava com os pais no Bronx, mas já exalava carisma — o tipo de garoto que ganha o apelido de “Ace” aos 16. Sua mãe o levou de carro para a audição do Kiss. Eles balançaram a cabeça diante do estilo de roupa dele — mas “estilo e habilidade” nunca foram problema para esse cara.
Ace virou figura de culto entre os jovens dos anos 1970 com sua pose de rockstar na capa de Alive!, o álbum que fez o Kiss estourar. Naquela época, a banda ainda vendia poucos discos e mal se mantinha à tona, mas a foto da capa os mostrava como super-heróis maiores que a vida, dominando o público abaixo do palco. A capa os transformou em estrelas — talvez até mais do que o próprio disco. Ace ocupa o centro da imagem, joelhos dobrados, a guitarra Gibson pendurada bem baixa, enquanto Gene e Paul posam dos dois lados. (The Catman está quase escondido na fumaça.)
Os integrantes desfilam confiança na capa de Alive! — embora a foto tenha sido tirada num teatro vazio em Detroit, e não em um show real do Kiss. Como disse Gene Simmons: “Se você olhar bem, vai ver que o Ace está segurando a guitarra de cabeça para baixo.”
Mas isso resume bem o poder de estrela de Ace — ele não precisava que a guitarra estivesse ligada, ou sequer na posição certa, para invocar seu carisma de Space Ace e assumir o papel de agente do caos cósmico no coração do Kiss. (É até apropriado que não houvesse público de verdade na capa de Alive!, o álbum “ao vivo” mais famoso que ninguém realmente acredita ter sido gravado ao vivo.) Ele foi essencial para o modo como o Kiss inspirou bandas de Chic a Mötley Crüe, dos Ramones ao Weezer, a mergulharem na fantasia e deixarem o mundo real para trás. Para as bandas da Geração X — Nirvana, Pearl Jam, Rage Against the Machine — Ace foi o primeiro herói da guitarra, aquele que os mandou seguir seus passos.
Ace escreveu clássicos como “Shock Me”, inspirada por um momento real de quase-eletrocussão, e “Cold Gin”, inspirada por gin gelado real. “Shock Me” foi a primeira vez que ele se arriscou nos vocais principais de uma música do Kiss — uma estreia tardia e modesta, mas inesquecível. Em muitos sentidos, sempre pareceu que Ace cantava diretamente para o público, para o Kiss Army que o energizava e o mantinha nas alturas. “Seu raio é tudo o que preciso”, gritava Ace. “Minha satisfação cresce / Você me faz sentir à vontade / Você até me faz brilhar.”
O estrelato funcionava assim para Ace — ele era um fio desencapado, sobrecarregado, às vezes queimando, com os fãs como sua fonte de energia. Ele não parecia querer existir fora do palco. Os outros podiam tirar a maquiagem e voltar à vida real (pelo menos em teoria), mas Ace era rockstar o tempo todo. Precisava da eletricidade do público tanto quanto o público precisava dele — os jovens desejavam seu brilho glamouroso e o refletiam de volta. Ninguém na banda festejava como Ace, um turbilhão autodestrutivo famoso por beber uma garrafa de perfume achando que poderia ter álcool. Ele foi um dos grandes personagens do mundo do rock, com sua voz aguda e a risada inconfundível que soava como um “ack!” de dragão engasgado. Como seus colegas de banda, era um improvável, mas fiel amigo dos caras do Rush — uma das duplas de bandas mais adoradas e improváveis do rock. Como contou Geddy Lee à Rolling Stone: “A gente ficava chapado com o Ace Frehley no quarto de hotel e fazia ele rir.”
Sempre dava para saber quando era Ace quem tocava o solo — pelos surtos de barulho enlouquecido em “Strange Ways”, “100,000 Years” ou “Calling Dr. Love”. Como ele disse à Rolling Stone em 2014: “Page, Clapton, Hendrix, Townshend, Beck — tudo o que fiz foi copiar os solos deles e dar uma torcida, e pronto, você tem um estilo de guitarra.” Parte do mistério de Ace era o quão legal soava quando Paul Stanley dizia seu nome — especialmente em Alive II! Ele sempre pareceu etéreo, de outro mundo, ainda mais desconectado da realidade que seus colegas — parecia enxergar o mundo de lado, seja musical ou visualmente, com sua postura cambaleante e seu andar desajeitado. Mas também era um comediante nato, como fica evidente na clássica entrevista do Kiss de 1979, ainda com maquiagem completa, no The Tomorrow Show com Tom Snyder. A risada de Ace é tão abrasiva e insana quanto sua guitarra; como ele explica ao apresentador: “Acho que esta roupa se explica sozinha.”
Em 1978, Kiss realizou um dos feitos mais lendários (e megalomaníacos) da década: quatro álbuns solo lançados simultaneamente, um de cada integrante da banda, todos no mesmo dia. Para surpresa geral, Ace roubou a cena com o seu disco, graças ao sucesso “New York Groove”. É uma das joias da coroa do repertório do Kiss — uma pequena e vibrante música de Russ Ballard que já havia chegado ao Top 10 no Reino Unido com a banda glitter-pop Hello. Mas ela ganhou um novo brilho com o toque de poeira estelar de Ace. Cada detalhe de “New York Groove” soa elegante e grandioso — o refrão marcante no ritmo de stomp-stomp-stomp, as guitarras elásticas, o balanço cha-cha e seus vocais cheios de presença, proclamando: “Vai ser êxtase! Este lugar foi feito para mim!”
Para um cara que dizia ser inseguro com sua voz, Ace esbanja confiança, desfilando pela cidade com um punhado de dólares e mulheres perigosas o perseguindo. É um hino sobre Nova York no nível de Sinatra e Biggie. Não é à toa que é um clássico dos estádios — toca no Citi Field toda vez que os Mets vencem. E há algo bonito no fato de Gene Simmons e Ace Frehley nunca terem parado de discutir sobre qual dos álbuns solo vendeu mais — embora seja inegável que o de Ace deixou uma marca maior na história. (Para ser justo, o disco de Gene também era excelente, com a quase-hit “Radioactive” e sua doce versão da balada da Disney “When You Wish Upon a Star”, além da caricatura dele pingando sangue no rótulo do vinil.)
Ace deixou a banda em 1982 — pouco antes de o Kiss dar seu salto de fé, tirando a maquiagem e iniciando uma grande retomada com hits como “Lick It Up” e “Heaven’s on Fire”. Ele continuou com o projeto Frehley’s Comet e retornou ao Kiss em 1996, na turnê de reunião com a maquiagem de volta — um sucesso estrondoso. Sua última apresentação com eles foi nas Olimpíadas de Inverno de 2002, em Salt Lake City. “Meu problema é que Deus me deu dons demais”, disse ele a Brian Hiatt, da Rolling Stone, em 2014. Seu livro de memórias se chamava No Regrets, mas depois ele admitiu que tinha alguns, planejando uma continuação: “O título provisório é Some Regrets.” Ele continuou fazendo música até o fim — com seu álbum de 2024, 10,000 Volts — e manteve-se fiel a si: o inabalável Space Ace, com sua mistura única de brilho extraterrestre e garra do Bronx. Este lugar foi feito para ele.
Voe para sempre, Spaceman.
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